Em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo e à jornalista @silviahaidar, o psicólogo Leonardo Abrahão explica a importância redobrada da Campanha Janeiro Branco em tempos de pandemia e como indivíduos e instituições sociais podem somar ao pacto pela Saúde Mental que a humanidade necessita firmar em benefício de si mesma e de todo o planeta.
Agradecemos à jornalista @silviahaidar e ao Jornal Folha de São Paulo por darem voz e visibilidade à causa da Saúde Mental e à campanha brasileira de Saúde Mental — o Janeiro Branco.
Leia, abaixo, a entrevista do psicólogo Leonardo Abrahão ao Jornal Folha de São Paulo.
Com os impactos que a pandemia da Covid-19 tem provocado na saúde mental, como o aumento de sintomas depressivos e de ansiedade, a campanha Janeiro Branco deste ano traz a mensagem de que todo cuidado conta.
Criado em 2014 pelo psicólogo Leonardo Abrahão, o movimento tem como objetivo chamar a atenção da população para a importância dos cuidados com a saúde emocional.
Apesar de o debate sobre o tema ter ganhado mais espaço nos últimos meses devido aos desafios impostos pelas condições do isolamento social, Leonardo diz que ainda estamos longe de superar os estigmas em relação aos transtornos psicológicos.
“No entanto, em 2020, não houve quem não tenha sofrido com tudo o que aconteceu no mundo. Isso, com certeza, atrairá a nossa atenção para o que deve ser melhor conduzido em nossas vidas particulares e coletivas, inclusive em relação à saúde mental”, ressalta o psicólogo.
“Toda vez que a dor chega à humanidade, a humanidade se coloca a pensar sobre si mesma, sobre suas condições de existência, suas escolhas, seus acertos e seus erros em relação aos mais variados assuntos. Isso, obviamente, contribui para o lançamento de luzes sobre questões normalmente desprezadas ou encobertas por tabus”, observa.
Para respeitar as regras de distanciamento, nesta edição do Janeiro Branco não haverá palestras e rodas de conversa em lugares públicos, como nos anos anteriores. Os eventos serão feitos por lives e postagens nas redes sociais e no site da campanha.
Leia abaixo a entrevista com o psicólogo.
Com a pandemia, o ano de 2020 foi o que mais se falou em saúde mental. Você acha que esse debate ajudou as pessoas a se educarem sobre tema e a diminuir o estigma em relação aos transtornos mentais?
Ainda não. Os estigmas ainda existem e existirão por um bom tempo. Infelizmente, a falta de uma cultura da saúde mental no mundo ainda deixará espaço para muitos preconceitos continuarem persistindo em meio aos relacionamentos humanos. É também contra isso que a campanha Janeiro Branco luta.
Porém, pelo fato de os desafios que a humanidade enfrentou no ano passado terem produzido intensas consequências prejudiciais à saúde mental de um número incalculável de pessoas, as dores que essas pessoas sentiram também as levarão a pensar sobre a importância da saúde mental em suas vidas.
Toda vez que a dor chega à humanidade, a humanidade se coloca a pensar sobre si mesma, sobre suas condições de existência, suas escolhas, seus acertos e seus erros em relação aos mais variados assuntos. Isso, obviamente, contribui para o lançamento de luzes sobre questões normalmente desprezadas ou encobertas por tabus.
Em 2020, a humanidade foi obrigada a pensar, de forma bastante ampliada, sobre questões direta e indiretamente ligadas à saúde mental dos indivíduos, como, por exemplo, educação infantil longe das escolas, lares transformados em ambiente de trabalho, vida sexual em tempos de isolamento social, distanciamento dos idosos, risco de desemprego, lutos inesperados, inconsequências políticas e falta de recursos financeiros para a sustentação da vida material.
Tudo isso diz respeito às múltiplas dimensões em que a saúde mental dos indivíduos opera. Os antigos estigmas relacionados à saúde mental dos seres humanos ainda persistirão por um bom tempo. Ainda vamos precisar de muitos janeiros brancos para melhorias nesse campo.
No entanto, em 2020, não houve quem não tenha sofrido com tudo o que aconteceu no mundo. Isso, com certeza, atrairá a nossa atenção para o que deve ser melhor conduzido em nossas vidas particulares e coletivas, inclusive em relação à saúde mental.
O debate sobre a importância de cuidar da saúde mental já chegou às empresas em relação aos seus funcionários?
Não, ainda é um desafio e necessitaremos de muitos janeiros brancos para que uma verdadeira cultura da saúde mental permeie todas as relações humanas. Ainda estamos no início do processo de conscientização das pessoas e das instituições a respeito de tudo o que se relaciona às condições psicológicas e subjetivas dos indivíduos.
Além disso, as lógicas e as ideologias dos nossos sistemas sociais, culturais, produtivos e econômicos ainda são bastante compromissadas com imperativos materialistas, financistas, competitivos, particulares e individualistas indiferentes à saúde mental da maioria das pessoas em nossa sociedade, que é profundamente ignorante em relação às condições psicodinâmicas dos seres humanos.
O nosso analfabetismo emocional e o nosso desprezo à psicoeducação ainda cobra um preço muito alto da humanidade e até mesmo das empresas que não olham para as realidades subjetivas dos indivíduos que as compõem, que as operam e as sustentam.
O Ministério da Saúde anunciou que deve revogar uma série de portarias que estruturam a política de saúde mental no país. Entre as propostas, está o fim do programa de Volta para Casa, que promove a reinserção social de pacientes com transtornos mentais, e mudanças no atendimento dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial), como a extinção daqueles voltados exclusivamente a usuários de drogas e álcool. De que forma essas medidas podem prejudicar a área de saúde mental no atendimento público?
Caso venham a ser adotadas, essas medidas estarão na contramão de tudo o que diz respeito ao processo humanizatório e ao perfil democrático, social e progressista com que a política nacional de saúde mental vem sendo construída desde o início do período de redemocratização do nosso país e da eclosão das lutas antimanicomiais que a consubstanciaram.
A arbitrária substituição de uma visão holística, integrativa, humanista, multiprofissional e interdisciplinar de serviços psicossociais por uma visão medicalizante, privatista, individualista, psiquiatralizante e hospitalocêntrica agredirá valorosos princípios epistemológicos, metodológicos e estruturantes do SUS (Sistema Único de Saúde), assim como acabará resultando em sérios retrocessos a modelos excludentes e questionáveis de atendimento em saúde mental que a reforma psiquiátrica brasileira há muito tempo superou.
A educação sobre saúde mental e a diminuição do estigma em relação aos transtornos podem ser alguns dos resultados positivos que poderemos tirar desse período de pandemia?
Esses resultados positivos desabrocharão no futuro. Os desafios que a humanidade viu-se obrigada a olhar com mais atenção em 2020 apenas começaram a mostrar a extensão, a seriedade e a profundidade das múltiplas ignorâncias e das inconsequências que ela possuía em relação a si mesma –como, por exemplo, o fato de não conseguir parar atividades econômicas mesmo em nome da proteção da vida de milhares de pessoas.
O que a humanidade já possui acumulado em termos econômicos seria suficiente para proteger todas as pessoas do mundo obrigadas ao isolamento social. O que falta é vontade política por parte de poderosos grupos de indivíduos obsessivamente insaciáveis e uma cultura da saúde mental capaz de proteger o mundo das sombras e do desequilíbrio egocentrado desses mesmos indivíduos.
No futuro, 2020 será chamado de ano-lupa, ano-luneta ou ano-microscópio: ele escancarou e revelou novas e velhas verdades absurdamente negadas por um número absurdo de pessoas cientes de que são pertencentes a uma espécie caracterizada por racionalidade, consciência e senciência, que é a espécie Homo sapiens.
Como a pandemia tem impactado a saúde mental da população?
Muito do impacto da pandemia na saúde mental é absolutamente compreensível, normal e esperado. É normal sentir medo, ansiedade, alteração no apetite, tendência ao autoisolamento, humor deprimido, insônia eventual perante situações de estresse, angústia ou incertezas.
Há quem tenha começado a sentir dores inéditas no corpo, há que tenha percebido aumento na própria agressividade em relação a pessoas próximas. Também há pessoas que não conseguem mais enxergar sentido no casamento, no trabalho ou na religião que seguem. Essas são possibilidades absolutamente razoáveis e pertinentes em tempos como os que estamos vivendo.
O problema é quando as reações, por mais naturais e previsíveis que possam ser, começam a gerar sofrimentos intermináveis, perigo aos indivíduos e desfuncionalidades pessoais ou sociais. Nesses casos, a procura de ajuda profissional é altamente recomendada.
Quando sairmos dessa pandemia, quais sintomas devem ser os mais sentidos?
Seres humanos são infinitos particulares e universos irrepetíveis. Porém, a experiência nos mostra que a pandemia têm relação a muitas circunstâncias ligadas à origem de transtornos mentais como, por exemplo, transtorno do estresse pós-traumático, fobia social ou transtornos obsessivos compulsivos (TOC).
Em paralelo à pandemia da Covid-19 já é possível perceber a ocorrência de uma verdadeira pandemia em relação à saúde mental. Estudos já apontam aumento nos casos de depressão, de transtornos de ansiedade, de uso abusivo de substâncias psicoativas, de abuso infantil, de violência doméstica e de suicídios. Mais do que nunca, a mensagem da campanha Janeiro Branco é útil, necessária e pertinente.
Como se preparar emocionalmente para este ano que ainda deve exigir restrições como distanciamento social?
Em palestras, entrevistas e reuniões virtuais tenho defendido a tese de que as pessoas precisam abraçar o pacto pela saúde mental que o Janeiro Branco está propondo. Isso dará a elas a chance de contribuírem para uma causa coletiva e universal, proporcionando-lhes sentimentos de responsabilidade social, utilidade pública, propósito, autocuidado e pertencimento.
As pessoas devem entender que nós, seres humanos, somos seres da comunicação orientados por sentidos que damos às nossas próprias vidas. Como dizia Nietzsche e Viktor Frank, quem tem por que viver pode suportar quase qualquer como.
Mais do que nunca, é preciso que as pessoas invistam em autoconhecimento, autonomia e autoestima, tornando-se, metaforicamente falando, árvores com raízes mais fortes e capazes de resistir às inevitáveis intempéries do tempo.
Também é importante que as pessoas recorram a técnicas amplamente validadas quando o assunto é prevenção em saúde mental, como ioga, meditação, mindfulness, exercícios físicos regulares, sono regular, alimentação saudável, hábitos culturais que estimulem a criatividade e a cognição, vida sexual sincera e saudável, vínculos sociais reais e profundos, bom senso nas relações sociais e práticas espirituais harmônicas e equilibradas.
Por fim, é necessário que sejamos um país mais justo, mais igualitário e mais garantidor dos direitos sociais e dos direitos humanos. Não há campo fértil para a saúde mental onde reinam misérias sociais, violências (concretas ou simbólicas) nas relações interpessoais e más intenções políticas nos processos individuais e coletivos.